segunda-feira, 14 de março de 2011

Sweet Dreams

                                                                                        Para uma boneca em coma...


De repente se agarram, sem o menor motivo aparente. Tocavam-se ao som da gostosa música ambiente. Como o casal não soube precisar o que tocava naquele momento, e dada sua irrelevância, aqui diremos Bizet.


Passaram a noite juntos, agradável noite de outono, onde os corpos buscam abrigo diante à cerração.

Abrigo quase sempre oferecido pelo vinho. Às vezes por Desejo.

Era difícil para os dois entender o que acontecia, então preferiam trocar as incertezas por carícias e sorrisos. Atravessaram aquela fria madrugada de junho juntos, sabe-se lá por que, e estavam deveras satisfeitos por isso.

Brincavam como duas crianças que, aos poucos, vão reconhecendo seus corpos e dando fluidez aos seus toques. Ana Lee não se desgrudava da rosa que tinha ganhado a pouco de seu par, enquanto que ele não se preocupava em ter perdido os manuscritos que carregava, manuscritos estes que resultariam em um poema genial.

Agora pouco importava. Fecharam sua primeira noite sob um confortável edredom em um quarto de um motel não tão confortável assim.

Robert lia para sua querida trechos do Uivo. Ana Lee fingia prestar atenção em cada verso, embora preferisse, naquele momento, estar dormindo. Não que não gostasse da voz de Robert, muito menos dos versos de Ginsberg. Ocorria que eram cinco da manhã e questões fisiológicas a impeliam ao sono. Tivera doces sonhos repousando seus seios nus sobre o dorso de Robert.

De manhã cedo, eles se despediram, entre promessas de voltarem a se ver em breve. Tivera sido bom, mas era hora de cada um retornar a sua vidinha. Robert voltou aos seus livros e, Ana Lee, às caixas da bateria da Brown Bunnies Band.

Duas semanas depois, as promessas de voltarem a estar juntos ainda não haviam se concretizado. Não tinham tido oportunidade de se reencontrar, é verdade, assim como também é verdade que não haviam feito nada para que essas oportunidades surgissem.

Y así los dias pasaban...

Meses depois se esbarraram no Savoy. O bar estava lotado, em virtude das celebrações à Liza, que largaria pela enésima vez a vida de rua, internando-se em uma clínica de recuperação de adictos.

Ana Lee avistou Robert e foi direto até a mesa dele. Conversaram durante dez minutos, trocaram um carinhoso beijo na ponta dos lábios e novamente sorriram. “Cuide-se”, sugeriu Ana Lee, esquecendo-se que há exatos noventa e oito dias tinha implorado a Robert, com os olhos marejados, que a protegesse.

Acontece que, naquela opaca noite de outono, Desejo estava bem mais excitada do que hoje à noite. Sob a neblina baixa que circundava o Savoy, diante dos dois únicos fregueses – além de Robert e Ana Lee – que enfrentaram aquela longínqua madrugada, sob o olhar cansado da taberneira - que, gentilmente, secava a mesa com um pano de prato imundo - e, sobretudo, entorpecida pelos acordes soturnos de um provável Bizet, Desejo sentira suas coxas encharcarem ao aproximar aqueles dois jovens.

“Há um certo mês de junho, em que o trigo precisa ser cortado”, brincava Desejo consigo mesma.

Hoje não. Desejo apenas assiste, entediada, ao reencontro. Fuma um cigarro barato e debocha ao perceber Robert aproximar-se do balcão e pedir um conhaque, ao passo em que Ana Lee vai sendo conduzida por uma amiga até a porta do bar.

Desejo dá um forte trago e sorri. Resolve também deixar o ambiente e se esquecer dos possíveis amantes, pois Desejo é criatura de momento.

 
 
*There is a June when Corn is cut”, por Emily Dickinson.

sábado, 12 de março de 2011

Amor, eu vou ali. Ali na Portela.


Quando liguei do trabalho para a minha casa, e, durante a conversa, minha patroa soltou um “amor, eu vou ali”, juro que não vi maiores problemas. Imaginei que ela fosse comprar cigarros, ir à casa da avó ou – no pior dos meus pesadelos – no máximo visitar uma velha amiga.

Ao chegar em casa, cansado da labuta, sento-me ao sofá para assistir televisão, ciente da missão profissional cumprida e ansioso por esperar o retorno de minha digníssima esposa. Até que o repórter do RJTV me pôs a par da veracidade dos fatos.

Na verdade, o enigmático “Amor eu vou ali” – dessa vez já com a maiúscula inicial que lhe cabe e, por um descuido dos fundadores, sem a vírgula após o vocativo – tratava-se de um bloco de carnaval que, para alegria dos foliões e desgosto dos maridos ciumentos, arrastava uma multidão pelas ruas de um distante subúrbio carioca.

Confesso que ao descobrir tal informação só pensei em duas coisas: primeiro, em morrer; segundo, em matá-la. Não sei se exatamente nessa ordem. O fato é que não matei ninguém, muito menos morri – pelo menos no sentido literal dos termos.

Duas doses de prozac depois, eu pude analisar a situação com calma, e vi que mais uma vez só me restavam duas opções: sofrer em casa ou sambar na Portela...

Ah, minha Portela! Tu que tantas vezes embalastes meus sonhos, tiraste-me o canto para defender teu pavilhão, tiraste-me os tostões para vesti-la de gala...

Ah, minha Portela, tu que me puseste às lágrimas, por alegria e dissabor, ensinaste-me o que é o amor através de teus versos, tu de tantos carnavais...

Tu, minha Majestade, que me faz esperar o ano inteiro, ano após ano, apenas para vê-la cobrir a avenida de azul e narrar para nós mais um enredo vencedor...

Tu que carregas o espírito de uma águia, a deslumbrar o mundo quando fala das coisas do coração;

Tu da porta-estandarte de pés descalços, das rainhas desnudas, que arrancam o sangue das mãos e vísceras de seus ritmistas;
Tu que manifestas coisas que, sei-lá-não-sei, na alma de suas baianas, levando-as a bailar em um gostoso girado...

Tu, ó deusa, dos foliões que brincam em suas alas, das tantas Tias que te temperam com amor, do calor das passistas e elegância de teus compositores.

Ah, minha Portela, obrigado, minha Portela querida, tu salvastes minha vida!